Com objetivo de conhecer os arquitetos, os projetos e as histórias por trás da arquitetura portuguesa de referência, Sara Nunes, da produtora de filmes de arquitetura Building Pictures, lançou o podcast No País dos Arquitectos, em que conversa com importantes nomes da arquitetura portuguesa contemporânea.
No episódio desta semana, Sara conversa com Tiago de Mota Saraiva, do ateliermob, sobre a recuperação de sete residências afetadas pelo incêndio de Pedrógão Grande, em 2017. Reveja as outras entrevistas realizadas pelo podcast No Pais dos Arquitectos e leia a transcrição da entrevista com Saraiva, a seguir:
No País dos Arquitectos
Sara Nunes: Nós estamos bastante entusiasmados porque o arquitecto Tiago Mota Saraiva é o fundador do ateliermob, que é um atelier muito especial porque é um atelier de causas que trabalha a 99%. Quais são as causas pelas quais têm trabalhado a 99%, Tiago?
Tiago Saraiva: Bem... Em primeiro lugar deixa-me valorizar o facto de teres tido esta ideia de criar um podcast e, ainda por cima, um podcast sobre a Arquitectura, que é algo que tínhamos vindo a sentir falha, pelo menos, no contexto português. Já a ideia dos 99% posso explicar que tem muito a ver com a anterior crise... Quando começámos o atelier, em 2005, nós éramos um atelier particularmente vocacionado para a encomenda pública (quer dizer, sempre o fomos), mas a nossa encomenda era conseguida, sobretudo, a partir de concursos públicos. Aliás, como grande parte dos ateliers jovens... só que a partir de determinada altura fomos ganhando algumas obras, sempre seguindo essa lógica. Depois chegou a crise e grande parte das obras públicas em que estávamos envolvidos foram parando. Como grande parte dos ateliers, começámos a ficar com muito pouco trabalho. Bem... quer dizer... muito pouco trabalho não significava que havia, de facto, muito pouco trabalho e era esta a nossa reflexão porque cada vez mais olhávamos à nossa volta e víamos necessidades de práticas profissionais, mas sobretudo para pessoas que não tinham dinheiro para pagar os nossos serviços.
Nessa medida – e também porque não trabalhamos pro bono – afirmamos sempre que temos de ser pagos pelo trabalho que fazemos. Ou seja, o trabalho é um trabalho profissional, não é voluntariado, mas começámos a pensar em como é que deveríamos criar condições para trabalhar para aqueles 99%, que não têm capacidade económica para nos pagar os serviços, mas que necessitam de Arquitectura. Foi um pouco assim que começou. Numa primeira fase, iniciou como um núcleo de trabalhos do ateliermob, que eram os trabalhos para os 99%. Depois independentizou-se e, em 2016, constituiu-se como uma cooperativa, que agrega não só trabalhadores que vieram do ateliermob, mas também neste momento as próprias associações de moradores, o Sindicato dos Estivadores e da Actividade Logística (com quem fomos fazendo trabalho)... A lógica é sempre entidades sem fins lucrativos puderem fazer parte.
SN: Eu sei que vocês trabalham de uma forma um pouco diferente. Vocês identificam as causas e os projectos que querem e que acham que precisam dos vossos 99% e, a partir daí, vão à procura de fundos e de formas de os tornarem possíveis. É assim que funciona, Tiago?
TS: Exactamente. Bem... essa é a forma como começa a nossa história com esta ideia de trabalhar os 99%. É óbvio que, por exemplo, também a determinada altura, em 2016, nós começámos a pensar que aquilo não poderia ficar só por ali, pois queríamos ir mais longe nisto que é a nossa reivindicação do direito à cidade, no direito à habitação e a própria cooperativa se instituiu... Ou seja, para além de muitas vezes trabalhar nos bairros mais pobres, a cooperativa instituiu-se como entidade que, por exemplo, era chamada pela Assembleia da República para discutir a Lei de Bases da Habitação, ou discutir as rendas, ou discutir as condições nos bairros... Então nós começámos também a ter esta dinâmica de não só trabalhar na base, mas conseguir fazer chegar algumas reivindicações das bases para o poder político e, de certa forma, apoiar. Nós estivemos muito activos na construção da Lei de Bases da Habitação que temos hoje.
SN: Muito bem. A 17 de Junho de 2017 houve um grande incêndio em Portugal. Acho que não há nenhum português que não tenha na sua memória as imagens que, pelo menos, se viram na televisão. Isso afectou cerca de 500 casas e morreram 64 pessoas a tentar escapar do incêndio e 259 dessas 500 casas eram primeiras habitações. Imagino, Tiago, que não estiveste no local dos incêndios quando eles estavam activos, mas de certeza que ouviste muitas histórias de quem viveu estas catástrofes na primeira pessoa. Fala-nos sobre as histórias que mais te marcaram, que foste ouvindo durante este processo.
TS: Bem... Para já, é preciso referir que isto cruza-se com uma história que é pessoal. No dia 17 de Junho, estava tudo ainda ali a começar e não se conhecia bem a escala do que acontecia em Pedrógão, ainda não se percebia bem... Mas no dia 18 nasceu a minha terceira filha!
SN: Muito bem!
TS: O contacto que ia tendo com esses acontecimentos era através das notícias e recordo-me perfeitamente de estar constantemente a receber notificações de jornais que informavam do aumento do número de mortes nesses incêndios. Lembro-me de questionar de mim para mim: “O que é que está a acontecer no nosso país?”. Tenho a memória de um dia quentíssimo. Para além disso, tenho também a história de que um ou dois dias a seguir... salvo erro... um dia a seguir... telefonei a um colega, que é o meu mestre – o Fernando Bagulho – a dar-lhe a notícia sobre o nascimento da minha terceira filha e ele perguntou-me pela Mafalda, que foi nossa colega e a Mafalda foi uma das pessoas que morreu naquela família...
SN: Caramba...
TS: Iam nove pessoas no carro... História essa que eu depois cheguei a ver porque fui visitar a casa, que ficou intocada. Ou seja, se a família da Mafalda tivesse ficado em casa não teria morrido. Para mim, é uma história muito marcante até porque depois conheci alguns dos familiares das crianças que estavam nos carros e tudo isso foi um enorme peso para todos nós. Até, por exemplo, nós decidimos abrir em Figueiró dos Vinhos e a determinada altura a própria equipa estava tremendamente massacrada com o peso daquilo que ainda se sentia no terreno. Nós fomos para lá morar.
SN: Foram para lá logo a seguir, Tiago?
TS: Ora bem... Deixa-me pensar... Eu julgo que nós abrimos atelier lá em Outubro ou Novembro de 2017.
SN: Ou seja, uns meses depois...
TS: Sim, uns meses depois. O que demorou muito foi a atribuição de casas. Esse processo foi muito confuso e o que é que cada uma das instituições ia fazer e reabilitar. Foi um processo muito, muito confuso inicialmente.
Essa confusão deriva de... Bem... É uma história que ainda está por contar, mas nós estamos a começar a escrever um livro sobre todo esse processo. Isto é, sobre o que nos lembramos, sobre as sensações e... aquilo que nós queremos muito é que haja, sobretudo, um conjunto de princípios para que os erros não sejam repetidos mais tarde, lembrando sempre o que se fez de bem ali. Há uma coisa, por exemplo, que nunca é valorizada.
SN: O que é?
TS: Nós fechámos com licenciamento de casas. Fizemos, no fundo, a reabilitação das sete casas.. para além do acompanhamento técnico de muitos financiamentos. E, ainda assim, havia coisas que eram só pinturas, revestimentos, ou recuperação de telhados em que só fazíamos uma nota técnica. Já na reabilitação das sete casas, a nossa última casa foi entregue, salvo erro, em Maio de 2019.
SN: Dois anos depois, não é?
TS: Só dois anos depois. Ou seja, houve o processo de licenciamento, todos os projectos, obras... foi um processo que... Por exemplo, os incêndios de Outubro, que ocorreram uns meses a seguir, foram muito mais devastadores do ponto de vista do território e com menos perdas humanas.
SN: Mas mais perdas de casas?
TS: Muitas mais, sim, muitas mais...
SN: Não tinha essa percepção.
TS: Em Outubro nós já estávamos no terreno. Eu vi aquilo e sei que foi uma coisa absolutamente devastadora, sobretudo no centro do país. Os incêndios de 15 de Outubro tiveram vários focos pelo centro do país. Já nos incêndios de Pedrógão, os incêndios atingem sete concelhos e, ainda assim, é uma área relativamente reservada e limitada. O grande problema foi a questão da estrada – denominada como a “estrada da morte” – porque foi aí que ocorreu a maior parte das mortes com as pessoas a tentar fugir e apanhadas ali com uma coisa básica ao que se percebeu depois...
As pessoas não pensaram... porque os carros não podiam andar... Como os fogos queimam o oxigénio, os carros sem oxigénio páram. Portanto, só se safou um carro que era eléctrico.
SN: Ok. As pessoas ficaram mesmo imobilizadas...
TS: Exactamente. No incêndio de Outubro eu acho que as pessoas já estavam com o medo de Pedrógão e talvez tenha havido uma resposta mais rápida. Quer dizer... não tenho a certeza. Mas sabes uma coisa que eu senti? Fiquei com a sensação de que havia uma série de preconceitos sobre o fogo, e digo preconceitos no sentido de ideias formadas.
SN: Que preconceitos eram esses que havia em relação ao fogo?
TS: Por exemplo, uma das coisas que eu nunca tinha tido consciência era o alcance das projecções. As projecções são as bolas de fogo. No caso dos eucaliptos, existem muitas projecções daquelas bolas de eucalipto que são tiros que projectam e podem projectar a muita distância. O que me explicaram é que, de um momento para o outro, num combate a um fogo, as pessoas que estão de frente para o fogo podem rapidamente ver o fogo ficar nas suas costas. E houve situações em que, por exemplo, nos vales o fogo passou por cima, sem sequer atingir lá em baixo as populações. Isso foi um dos preconceitos que eu tinha. O outro preconceito era... e, quanto a esse, ainda continuo sem saber o que defender... mas vou passar a explicar... Tem a ver com aquela ideia de que nós temos quando pensamos que o que é preciso para um bom ordenamento, até para o combate ao fogo, é a concentração. Ou seja, ficamos com aquela ideia de que nós não podemos continuar a deixar que as habitações fiquem pulverizadas por todo o território. No entanto, essas populações são fundamentais para a protecção de fogos. Essas pessoas são fundamentais no primeiro combate e na primeira detecção dos fogos, ainda em campo aberto, fora das povoações. Mas, sim, nos incêndios de Outubro notou-se que as casas isoladas foram muito massacradas. Ainda hoje, nas casas de Outubro, existem ainda muitas casas por fechar, coisa que não é dito.
Por outro lado, as casas de Pedrógão foram quase todas encerradas até 2019. Ou seja, foi feito todo o processo com os municípios em condições muito precárias, sem nenhuma lei particular... E repara, uma das coisas que se dizia era para nós acelerarmos os processos e lembro-me que nós fomos um pouco considerados os chatos das comissões de gestão. Muita gente nos dizia que aquilo era para acelerar e, por várias vezes, levantávamos os braços e mostrávamos que estávamos ali a assessorar a Fundação Calouste Gulbenkian e a indicação que tínhamos da Fundação Calouste Gulbenkian era que deveríamos fazer tudo de acordo com a lei. Portanto nós questiónavamos as pessoas sobre qual era o diploma legal. E note-se aqui que não estamos a referir-nos aos anteriores porque não foi feita legislação nova e não houve nenhum estatuto de excepção, pois só em Outubro é que foi produzido o primeiro documento e, em Setembro, já nos estavam a pedir para fazer projectos. Ou seja, em Outubro foi colocado o primeiro documento a dizer que os projectos podiam ser todos objectos de comunicação prévia, o que é uma chatice. Como nós sabemos, e quem está na prática profissional sabe, trata-se de uma comunicação prévia onde se entrega Arquitectura e todas as especialidades de uma vez e depois fica-se sempre à espera da aprovação dessa comunicação prévia, embora haja 30 dias para resposta.
A legislação que foi produzida não veio ajudar quase nada e essa é uma das reflexões que nós queremos fazer é que rapidamente nós temos de criar legislação de emergência e os próprios municípios, neste contexto, não tinham capacidade, até por causa do estado de devastação em que entraram. Havia poucos técnicos (e isso já era um problema de antes), que de um momento ficaram com muito trabalho e, ainda assim, deixa-me dizer-te isto porque eu acho que às vezes é tão importante, que é os técnicos que eu conheci no terreno, o trabalho que eles fizeram dia e noite, sem terem sequer direito aos fins-de-semana nem nada. Os técnicos sentiam que era o trabalho das suas vidas e hoje quando ainda pairam dúvidas sobre o processo de Pedrógão é preciso perceber que houve tantas pessoas, tantos colegas, tantos engenheiros que havia ali no território dos vários municípios, que se esforçaram imenso. Se calhar não fizeram as coisas melhores, se calhar não fizeram os melhores levantamentos, mas todos nós ali estávamos a tentar ajudar-nos uns aos outros!
SN: Achas que é, principalmente, uma questão de legislação que não ajuda. Porque, de facto, existem pessoas interessadas em fazer que as coisas aconteçam, mas é uma questão de imobilização que vos deixa imobilizados para resolver esta questão?
TS: Houve a questão da legislação, havia a questão do Estado, da Administração Pública não ter capacidade de resposta para isto. Ou seja, havia poucos técnicos no terreno, eles deveriam ter podido contratar técnicos imediatamente para o território para dar apoio, mas não se conseguiu. A determinada altura eu partilhei esta ideia com o Presidente da República, até porque nos fomos encontrando com alguma frequência no terreno.
As idas dele ao terreno eram importantes, tal como as dos ministros eram importantes numa fase inicial para acelerar processos. No entanto, a dado momento, tornou-se o caos porque cada vez que lá ia o Presidente da República ou o primeiro-ministro a Câmara Municipal parava, pois tinha de preparar todo o protocolo para saber para onde é que ia e perdíamos um dia de trabalho nisso. Depois em Outubro o Presidente da República acabou por ter mais cuidado com essas idas porque causam, de facto, um impacto grande nas estruturas que estão no território a trabalhar. Mesmo assim, eu acho que há outras coisas e que eu considero relevantes para a nossa prática profissional, que tem a ver com a enorme desvalorização que a determinada altura se coloca nos projectos. Como eu já tinha referido anteriormente, nós acabámos por ser vistos como “os chatos” porque comentava-se que demorávamos mais tempo a fazer as coisas e, ainda assim, os projectos de execução eram feitos num mês e meio. E não se tratavam sequer de projectos de execução porque nós tivemos de inventar um esquema para perceber como é que nós conseguiríamos responder a esta questão específica. Então, fazíamos o licenciamento em projecto base e depois criávamos o projecto base detalhado, (foi esse, aliás, o nome que lhe demos). Esse projecto tinha alguns mapas com a escala 1/100, havia um ou outro detalhe se necessário, mapas e depois uma listagem de trabalhos muito robusta... esta era a única forma de nós conseguirmos fazer as entregas num mês e meio e lançar os concursos.
Qual era o problema? Os empreiteiros eram sobretudo locais e como faziam obras sucessivas acabava por ser difícil eles enviarem propostas e estimativas orçamentais, dada a sua carga de trabalho. Já nós, fizemos sempre concursos, aliás fomos fazendo isso com os vários empreiteiros... Mas então como é que solucionamos esta questão? Criámos uma assistência técnica robusta especial. Ou seja, informamos que aquilo que iríamos fazer era uma coisa muito presente e em que semanalmente visitaríamos todas as obras. E assim foi. Lembro-me, por exemplo, que nunca tive tantas multas na vida por excesso de velocidade porque num dia tentava ir a todas as obras. Saía por vezes de Lisboa às sete da manhã e chegava às nove da noite. Era uma correria e apanhei imensas multas de velocidade porque estava ali a circular por todo o lado. Eram dias mesmo muito desgastantes e inscrevemo-nos sobretudo como parceiros no território dos próprios empreiteiros. Houve, por exemplo, uma solução construtiva que nós adoptamos muito para não deitar abaixo paredes de pedra, que era a gunitagem, que é uma solução quase desconhecida. Penso que só um dos empreiteiros com quem trabalhámos é que conhecia essa solução e a tinha feito. Aos outros nós ensinamos a fazer. Fomos lá nós com os nossos engenheiros explicar porque até eles próprios a determinada altura queriam esse upgrade de construção.
Já agora, para explicar aos não arquitectos, a gunitagem trata-se de um bloco armado que se coloca pelo interior das paredes para as paredes de alvenaria que não se sabe se têm muita robustez – até porque não se conhecem bem as propriedades da argamassa sem se fazer uma peritagem grande. Portanto, aquele bloco armado dá logo uma consolidação grande na parede. No entanto, implica fazer alteração de operações em obra, como por exemplo as electricidades têm de ser postas primeiro que o reboco para passarem por trás porque depois a armadura (digamos assim) não pode ser cortada. Tudo isso implica uma alteração de operações em obra e nós chamávamos sempre a atenção.
Foi um processo muito marcante para o atelier e para toda a gente que participou nele. Tirou-nos muitas horas de sono, envolveu-nos pessoalmente com cada uma das pessoas e ensinou-nos muito. Há uma coisa que eu costumo dizer, que é: Eu ali aprendi a gostar ainda mais de Arquitectura.
SN: Por que é que aprendeste a gostar mais de Arquitectura?
TS: Há coisas sobre as quais temos sempre dúvidas que tem a ver com esta questão de saber se o nosso trabalho irá ser, efectivamente, reconhecido. Ou seja, quando chegámos ao terreno e quando nos eram atribuídas casas... Aliás, a Fundação Calouste Gulbenkian chamou-nos exactamente porque sabia que fazíamos um trabalho social e estava consciente de que trabalhávamos com antropólogos. A Ana Catarina, que é a nossa antropóloga foi para lá viver e acompanhou o processo todo.
SN: Acompanharam o processo muito de perto...
TS: Sim e, portanto, cruzávamo-nos muito com as pessoas. Quando conversávamos com as pessoas elas diziam-nos que queriam a casa como estava e eu lembro-me de comentar no atelier que para fazer esse trabalho não era necessário um arquitecto. Depois conseguimos perceber que as pessoas estavam em estado de choque e ainda estavam em rejeição porque, como era óbvio, elas não queriam que aquilo tivesse acontecido.
SN: Queriam que o tempo voltasse atrás e que a casa representasse também, de certa forma, isso?
TS: Exactamente. No fundo, queriam apagar a ideia. No entanto, passados uns tempos, quando começámos a mostrar os primeiros esquissos começámos a ver que as pessoas afinal já queriam alterações e comentavam que não gostavam da cozinha como se encontrava na anterior casa que tinham perdido. A Dona Isilda era uma dessas pessoas e lembro-me de ela dizer que gostava que a cozinha da sua nova casa fosse como a do seu filho, mas com flores...
SN: (risos)
TS: E depois começavam cada vez mais a opinar, a introduzir mais coisas e tudo isto fazia-nos sentir que a Arquitectura estava a fazer parte da sua própria recuperação. Ou seja, quando na verdade, no início, as pessoas sentiam que só olhavam para o passado recente e diziam: “Eu não queria que isto tivesse acontecido!”. Com a Arquitectura as pessoas começaram a pensar: “Bem... eu posso viver melhor, eu posso sentir que a minha casa vai ser melhor que a anterior e eu posso ter uma casa muito mais fantástica”. E então essa pessoa vai dizer o que ela acha que vai ser a sua casa. E essa capacidade... ainda que com valores muito limitados porque é preciso referir que nós trabalhamos com valores muito, muito limitados, que até hoje acho incríveis. Quer dizer, nós tivemos casas entre 450 euros o m2 e 640, algo que só naquele contexto é que seria possível e não é reeditável, mas ainda assim conseguiram-se fazer casas. Na verdade, depois, independentemente de ter havido uma pressão política enorme, depois de ter havido uma desvalorização do projecto e dos arquitectos em todo o processo... Os arquitectos foram sempre muito... E nós representávamos claramente os arquitectos no meio do processo...
SN: Por que é que achas que isso acontece, Tiago?
TS: (suspiro) Porque toda a gente desvalorizava o projecto. Toda a gente achava (até os poderes públicos) que isto era uma coisa que se podia negociar, pedindo ao empreiteiro que se fizesse de uma determinada forma. Eu acho que aí a Fundação Calouste Gulbenkian protegeu-nos sempre, mostrando como as casas teriam de ser feitas seguindo os trâmites da lei e, nesse sentido, foi sempre acompanhando o processo. Para além disso, também sentíamos a irritação do próprio Estado porque questionavam o porquê de estarmos a demorar... Curiosamente, é preciso notar que as nossas casas não deram trabalhos a mais... Depois ministros e futuros ministros como a presidente da CCDR queriam ir inaugurar as nossas casas. Sabiam que as pessoas estavam muito contentes porque nós chegávamos e as pessoas recebiam-nos com abraços.
Ou seja, havia uma boa onda geral nas coisas e, inclusivamente, as pessoas sentiam a diferença entre quem estava ali a fazer projectos de Arquitectura e quem estava ali a fazer construção. Sentiu-se a diferença de uma forma clara.
SN: Sentes que, no final, as pessoas valorizaram mais este processo todo destas casas?
TS: Senti. As casas têm obtido agora bastante reconhecimento e penso que deveria ser feita uma avaliação. Eu, inclusive, já disse isso junto da Ordem dos Arquitectos (AO). Penso que a OA deveria promover uma avaliação dos processos todos para que, nós arquitectos, soubéssemos como posicionar-nos nestes momentos mais tensos. Todas aquelas casas tiveram assinatura dos arquitectos. Provavelmente, há muitas que não têm arquitectura e isso acho que era um aspecto no qual nós deveríamos mesmo reflectir, tendo em conta o nosso impacto no território. Não quero com isto dizer que as nossas casas não tenham erros. Todas elas foram feitas numa deriva, quase sempre num abismo e há aspectos que se calhar se nós tivéssemos tido mais tempo para pensar, melhor teriam ficado. No entanto, há algo que nós sempre mencionamos que é: estas casas nós não vamos escondê-las. Para o bem e para o mal, vão fazer parte do nosso currículo, da nossa vida e estão aí para serem avaliadas. Aliás, penso que deveria ser sempre assim porque não há obras maiores e obras menores num atelier de arquitectura. Por exemplo, nós agora estamos a fazer muito projectos de chão...
SN: Projectos de chão?
TS: É como eu costumo dizer... São projectos urbanos de acessibilidade. Por exemplo, ganhámos um concurso há uns anos aqui em Lisboa para construção de 127 passadeiras de acesso universal e mais de 30 de paragem de autocarro de acesso universal para fazer o projecto de execução. E estamos a fazer agora também com várias juntas de freguesia também isso. Ou seja, não diria que esses projectos são projectos menos relevantes no atelier do que fazer o Salão Central Eborense. Ou seja, todos eles têm reflexão, todos eles transpiram coisas uns para os outros.
SN: E todos eles têm um impacto no dia-a-dia das pessoas, é isso?
TS: Exacto, sem dúvida. A nossa obra é sempre pública. Mesmo a obra privada é sempre pública e com um impacto público.
SN: Tem sempre essa preocupação?
TS: Sim.
SN: O arquitecto é um fazedor de cidades. Que cidades é que tu sonhas construir, Tiago?
TS: Agora cada vez mais é que sinto e sonho... Isto é, há formas de construção de cidades que nós temos de adoptar e que continuamos... Quero dizer, eu não tenho um fim... Eu não te consigo responder com um fim, dizendo-te que é uma determinada cidade que eu gostava de construir. Eu diria que sei de alguns caminhos que gostava de construir e sei que é uma cidade que não exclui, obviamente. Para além disso, é uma cidade em que as pessoas fazem parte das decisões fundamentais e essa decisão fundamental não se esgota num dia de eleições. A decisão fundamental é feita no dia-a-dia, a partir da discussão entre as pessoas. Há muitos anos que acompanhamos muito... Não fosse a pandemia e teria mantido as idas e vindas a várias cidades. Por exemplo, Barcelona é uma cidade que eu visito quase todos os anos. A nossa prática profissional quando não encontrávamos... mas posso dizer que agora já há mais projectos irmãos como este em que se trabalha com os 99% do ateliermob.
SN: Projectos irmãos, como assim?
TS: Projectos com quem nós fazemos simbioses, com quem nós nos cruzamos com muita frequência. O Colectivo Warehouse, a Arteria são casos evidentes. Ou seja, nós agora já vemos várias pessoas a fazer este tipo de prática profissional.
SN: Não estão sozinhos?
TS: Sim, é isso, não estamos sozinhos. Os nossos primeiros quadros de relação vêm muito de Espanha e da América Latina e isso fez-me acompanhar muito de perto o crescimento do Barcelona en Comú e a ida de Ada Colau para presidente de Cambra em Barcelona. Acompanhámos muito de perto todas as discussões e todas as dúvidas de como se montavam os processos cooperativos, como é que se criavam as dinâmicas de bairro e como é que os superblocos ou as super-ilhas se construíam. Depois também começam a aparecer projectos por toda a Europa, coisa que aqui... Eu acho que, nós aqui em Portugal, ainda estamos sem conseguir que estas ideias tomem parte da cidade.
Ou seja, as cidades ainda estão todas elas muito dedicadas ao mercado imobiliário e todas elas a pensar em formato Excel. Para nós, arquitectos, percebemos que isso é muito limitador porque não tem a tridimensionalidade necessária e, na realidade, não é mensurável porque não é algo onde basta o resultado de uma coluna com uma linha. É um pouco mais do que isso e a minha angústia é que eu penso que esses movimentos estão a chegar pouco a Portugal e à discussão pública.
SN: Achas que estão mais envolvidos em Espanha e na América Latina?
TS: Sim, estão a acompanhar. São muito mais referenciais... mas... sei lá... falei em Espanha e na América Latina, mas também posso dizer que um dos projectos absolutamente incríveis que eu visitei sem saber o que era foi o Les Grands Voisins. Trata-se de um projecto que, a determinada altura, surge de uma ocupação de um hospital, que estava em Paris nas costas da Fundação Cartier de Jean Nouvel, numa zona...
SN: Privilegiada...
TS: Exactamente. Há um hospital que está a ser desactivado e está para acontecer um grande projecto imobiliário. Começou a ser ocupado por sem-abrigos. A determinada altura, uns vizinhos começam-se a envolver, a organizar... De repente aquilo transforma-se no Les Grands Voisins, que em português significa “Os Grandes Vizinhos” e com uma dinâmica que constrói trabalho e produz cidade. Durante cinco anos, consegue um contrato de enorme precariedade porque tinham de sair quando o projecto imobiliário começasse a decorrer, mas conseguem criar trabalho, cidade e há uma dinâmica absolutamente extraordinária naquele território com um envolvimento popular muito interessante. E eu acho que isso vai ser o futuro da cidade dinâmica e da cidade democrática. Está visto que eu hoje quando circulo pela Baixa de Lisboa e falo de Lisboa porque não sei como é que se encontra a Baixa do Porto... mas sei que na Baixa de Lisboa é devastador. Depois do primeiro confinamento, a primeira vez que eu fui à Baixa de Lisboa eu chorei porque via aquilo tudo fechado. Ou seja, era como se tivesse caído uma bomba, que não destruiu os edifícios, mas os hotéis tinham fechado, estava tudo já em lay-off. Todos eles passaram de um momento de riqueza para uma altura em que tiveram de se socorrer do Estado e aquilo estava completamente vazio. Hoje, apesar de tudo, estamos nós num período em que os restaurantes e os cafés já podem começar a abrir.
Hoje da manhã já estive na baixa e a baixa está vazia porque as pessoas acham que lhes fica mais caro abrir agora, numa época em que não há gente. Nas zonas onde há habitação em Lisboa as coisas estão a fluir, estão a recuperar e, ainda assim, os negócios estão a aguentar. Desta forma, provou-se o quão insustentável é uma cidade totalmente monofuncionalizada pelo turismo.
SN: O Porto também está muito vazio e muitas coisas fecharam, sim.
TS: Pois...
SN: É assustador.
TS: Pois é...
SN: Tiago, muita obrigada por esta conversa e principalmente por nos relembrares de que a Arquitectura também pode ter um papel de reabilitação nestes processos tão dolorosos como são os dos incêndios.
Nota do editor: A transcrição da entrevista foi disponibilizada por Sara Nunes e segue o antigo acordo ortográfico de Portugal.